Lá estava eu, novamente, sem ter o que fazer, observando. Não lembro exatamente quando encontrei aquele olhar, mas sinto claramente a lembrança daquele mar. [...]
Negro, profundo e misterioso, o tipo de olhar que te puxa para dentro, que te prende e te impede de desviar. Um momento quase cinematográfico, quando tudo muda e o mundo entra em slow motion, a sensação de que um fio acaba de se conectar.
Aquele olhar, que te arrepia até o último fio de cabelo e te atinge como um tiro de canhão. Podia ser um olhar comum, e de certa forma era um olhar comum, mas mesmo assim tão especial e raro de se encontrar. O que havia ali, perdido e escondido, tão frágil e difícil de decifrar?
"Os olhos são a janela da alma." Você com certeza já ouviu esta expressão. Os olhos são portas, são degraus, são fendas para escuridão. Como pode uma coisa tão pouco mutável quanto um olhar se desdobrar em uma imensidão de emoções e abismos em profusão?
Vamos pensar nisto mecanicamente, mas não na mecânica usual, e sim na mecânica nonsense que para mim parece funcionar. Os olhos são máquinas, altamente equipadas para ver e armazenar. Uma esfera, colorida e iridescente, uma tela de pintar, que os alelos pintores se encarregaram de desenhar. Uma armadura protetora, uma capa da invisibilidade, que alguém um dia resolveu rasgar. Este rasgão criou uma fenda de onde um liquido negro escorreu, criando uma poça, uma areia movediça que pode te sugar. Dali pode-se enxergar o interior da alma, todas as estantes e passagens, todos os cantos do castelo e tudo o que se possa imaginar.
Nenhum olhar é igual porque cada artista pincela e revela o que tem para transbordar, o que tem para externar, e cada um tem olhares com os quais tem mais facilidade de se conectar.
Quando duas almas afins se encontram, acontece um fenômeno difícil de relatar. Uma conexão, um canal se cria e as fendas se encaram e se analisam em um entrosamento peculiar. Um descanso para a mente, para esquecer os problemas mundanos e sonhar. O que determina a combinação? Não sei, ainda há muito a se estudar. Pode ser o tamanho das pupilas, o formato das pinceladas ou o brilho do verniz; ou algo que eu nem possa imaginar. Talvez seja importante estar no lugar certo, na hora certa. Ainda não sei, mas já posso lhe avisar: Cuidado, quando os olhares combinam, é difícil não se apaixonar.
(Ayla Dresch)